“Flood the zone with shit” — a guerra de informação da Extrema-Direita que agora ameaça Portugal (parte 1)
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Como é que ganhou o Brexit, o Trump e o Bolsonaro? E como é que as forças da extrema-direita ganham força rapidamente na Europa?
Como temos colegas e amigos em 3 países diferentes onde a extrema-direita ganhou força, decidimos fazer aqui uma autópsia do que sabemos estar a acontecer, porque as semelhanças internacionais são muitas.
Vamos responder à pergunta:
Existe uma estratégia digital de “guerra de informação” partilhada entre vários países pela extrema-direita?
Acreditamos que sim.
Agora está a acontecer em Portugal com a campanha presidencial de André Ventura. Mas foi igual no R.U. com a campanha do Brexit, depois nos E.U.A. com Trump, depois no Brasil, com Bolsonaro.
Mas como é possível que isto seja tão IGUAL um pouco por todo o Mundo? Quem anda a espalhar estas estratégias? Respondemos a essa pergunta com mais detalhe em outro artigo. A nossa teoria é que Steve Bannon, CEO da campanha de Trump, espalhou as tácticas de guerra de informação que foram usadas na campanha contra Hillary Clinton em 2016. Bannon fez uma tour pela Europa em 2018.
Durante essa tour, Bannon teve encontros com líderes da extrema-direita por toda a Europa com a intenção de “construir a infraestrutura do populismo global”. Bannon foi CEO da campanha de Trump, e tem ligações a empresas de guerra de informação que apoiaram o Brexit. Foi também conselheiro da campanha de Bolsonaro no Brasil.
Depois de ser demitido da Casa Branca, Bannon fez esta entrevista de 2 horas onde disseca as operações da campanha e as suas convicções sobre politica no sec. XXI, de onde tiramos grande parte da informação para este artigo.
Há no mínimo 6 partes da estratégia digital da Extrema-Direita que são comuns entre países:
- Um “exercito digital” nas redes sociais para controlar a conversa nas redes sociais, muitas vezes com uma combinação de contas falsas e verdadeiras.
- Fazer “controvérsias” constantes para ganhar publicidade gratuita. Dizer pelo menos uma “caralhada” por semana permite ao André Ventura estar nas notícias constantemente. Isso permite-lhe ganhar imenso “mindshare” . E essa presença constante do Ventura nos media tem outro efeito, talvez ainda mais perverso: cada vez mais pessoas concordam com ele. Isso porque uma das descobertas dos psicólogos mais consistentes na área de comunicação é que repetição = persuasão. O mero ato de repetir uma mensagem vezes e vezes sem conta tem o efeito de mudar a opinião das pessoas. (nota: isto também explica o comportamento de Ventura nos debates).
- Muitas das ‘controvérsias’ na realidade têm apoio popular. Ventura ataca os ciganos que recebem subsídios, mas nisso tem o apoio dos portugueses. E apoia a pena perpétua, que também tem o apoio da maior parte do público. Foi igual no Brasil, onde Bolsonaro acusou o PT de Lula de querer partilhar um “kit gay”, um livro contra a homofobia que dizia que ser gay era normal. O Brasil ainda é um país bastante religioso e a controvérsia do “kit gay” ganhou-lhe muitos apoiantes. Estas posições parecem “controversas”, mas na realidade, há um grande apoio do público, e assim estes partidos ganham apoiantes. São controvérsias estratégicas que separam o público dos “políticos do sistema”, que evitam o assunto.
- As controvérsias fazem parte duma campanha para “Flood the zone with shit” Um termo de Steve Bannon, para uma ideia que é possivel impedir os jornalistas e dos media de reagirem, sobrecarregando-os com várias coisas em simultâneo. “Os media só têm capacidade para responder um assunto de cada vez” diz Bannon. Com 3 controvérsias por semana, os media ficam desarmados. Isto é uma maneira de atacar o OODA loop dos media tradicionais. Porque é que mal ouvimos falar das posições políticas do Chega? Porque o partido fabrica 3 notícias/controvérsias por semana, os media são forçados a escolher a controvérsia da semana, e o Chega ganha publicidade sem nunca existir tempo para uma análise considerada do que realmente estão a propor.
- Utilizar o “fog of war/névoa de guerra” digital para surpreender os adversários. Antes do Facebook, quando um partido queria atingir um alvo político, tinha de fazer propaganda em público. Comprava anúncios na TV, jornais e outdoors. O Facebook e as redes sociais são a primeira vez que conseguimos ter um “fog of war” na política — os anúncios e os ataques que estamos a fazer no Facebook não são públicos — podemos ter alvos e ganhar apoios sem que os nossos adversários sequer se apercebam. Isso significa que pela primeira vez temos “névoa de guerra” na política — o nosso adversário não sabe para onde estamos a apontar a nossa campanha de propaganda. Isto pode explicar em parte a tendência dos partidos de extrema-direita para ganhar mais votos do que os previstos nas sondagens. Os partidos podem estar a recrutar pessoas que não aparecem nas sondagens.
- Programação NLP ou Programação Neurolinguística e Técnicas de Persuasão, um tópico tão vasto que merece um artigo próprio (para breve). Podemos ler aqui uma breve introdução sobre como Trump utiliza técnicas de persuasão. Ventura também é fã, usando frases feitas e repetição constante.
- Mobilização do eleitorado através de “Raiva E Medo”. De acordo com Steve Bannon, “as pessoas hoje em dia vão votar por duas razões, a raiva e o medo”. “As pessoas têm tanta informação” diz Bannon “que já decidiram em que direcção preferem votar”. Se as pessosa já sabem em quem vão votar, o mais importante é a mobilização, ou seja, serem convencidas a ir votar. E a melhor maneira de fazer as pessoas votarem são emoções negativas. Vejamos Ventura em Portugal, que se foca na corrupção política (raiva contra os políticos), na comunidade cigana que usa subsídios do Estado (raiva contra os ciganos) e no debate com Marcelo, o fato de ter ido ao bairro da Jamaica (medo de Marcelo ser um Presidente fraco contra criminalidade). Durante os Debates, as políticas do Chega raramente vieram à tona. O mais importante foi focar em Raiva e Medo.
Nenhuma destas táticas de guerra de informação pode ser vista em isolamento. Todas elas fazem parte de um ataque de persuasão em massa.
A ciência do comportamento é a base de tudo isto. Sem compreensão das descobertas da psicologia da persuasão, podemos pensar que estamos a ver apenas uma série de esforços paralelos, quando na verdade estamos a ver um esforço concentrado que utiliza todos os meios disponíveis.
Em conjunto estas tácticas dão à Extrema-Direita uma vantagem em guerra de informação que poucos ainda conseguiram vencer.
A Persuasão em Massa
Ou como é que posso convencer milhares de pessoas a votar em mim?
Sabemos que os grandes magnatas compram e financiam meios de comunicação social e que assim controlam a informação que acaba por ser publicada. Mas se alguém controla os meios de informação, também consigue mudar a opinião do público?
Racionalmente, queremos dizer que não.
Mas os cientistas dizem que sim. Podemos olhar, por exemplo, para a introdução da Fox News nos E.U.A. um canal de noticias 24h com foco de direita. O se viu foi que com a introdução da Fox News em mercados televisivos, viu-se uma mudança na inclinação política da população para a direita.
Infelizmente, a ciência mostra que quando controlamos a informação que as pessoas veem, conseguimos influenciar a sua inclinação política. Ou seja, é mesmo possível mudar a mente do público através da comunicação social. E é possível alterar a política de uma nação controlando os seus meios de informação.
Lembre-mo-nos que Informação repetida é informação guardada. Repetição = Persuasão.
“Uma maneira confiável de convencer as pessoas de mentiras é a repetição, porque a repetição não é fácil de distinguir da verdade” — Daniel Kahneman, neurocientista e autor de “Thinking Fast & Slow”
O “Exército Digital”
Ou, o que conseguimos fazer com alguns milhares de contas falsas no Facebook
As manchetes na tabacaria foram substituídas pelo Facebook, e se controlamos o algoritmo do Facebook, controlamos as notícias que as pessoas veem.
Se controlamos o que é visto, controlamos o “mindspace” do eleitorado. Não precisamos de Censura, quando controlamos o Algoritmo que controla o que é visto.
Então, o que podemos fazer com algumas milhares de contas coordenadas?
- Sabemos que o algoritmo do Facebook compartilha conteúdos com maior frequência quando eles têm altos níveis de engajamento. Portanto com algumas centenas ou milhares de contas coordenadas, conseguimos manipular o algoritmo do Facebook, alterando quais notícias e vídeos viralizam e quais acabam por desaparecer. Digamos que há uma reportagem da SIC sobre ligações (muito) suspeitas dum grande financiador do Chega. Mas um clip do Youtube do ChegaTV sobre o PS ou o PSD aparece no Facebook e viraliza. 100 000 veem o post do Chega, 1500 veem a reportagem da SIC. A reportagem da SIC sobre o Chega fica esquecida e o Chega ganha apoiantes. Ponto-Chave: Se uma reportagem não aparece no Facebook de ninguém, existiu mesmo uma reportagem?
- Espalhar propaganda em grupos alheios — O jornal O Minho detetou um movimento de “apoiantes” do Chega em grupos do Facebook, muitos deles com contas falsas. Esses “apoiantes” partilham propaganda que depois recebe imensos likes, para aparecer no topo do feed dos membros do grupo.
- Podemos criar uma “cacofonia” de “apoio popular”, e manipular os posts dos adversários com comentários negativos em massa. Se o nosso partido faz um post, ele tem milhares de likes e comentários positivos. Se os outros partidos fazem um post, estão cheios de comentários que falam apenas dos pontos negativos. A impressão é que o nosso partido tem um apoio enorme.
Tudo isto tem de ser coordenado, com disciplina na mensagem a repetir e os pontos a focar. Por isso é que quando vemos mensagens de “apoiantes” do Chega, eles repetem a mesma mensagem vezes e vezes sem conta, com nomes diferentes.
Há mesmo contas falsas?
No geral, sim.
No Brasil, Bolsonaro utilizou spamming em massa em grandes grupos do Whatsapp.
Durante as eleições de Trump, a Rússia e outros actores tinham contas falsas no Twitter e no Reddit para fazer operações de influência.
Sabemos que há uma mistura de contas falsas e verdadeiras nestas operações de influência.
As “controvérsias”
3 pontos sobre como manipular a atenção dos media e ganhar apoio popular
As controvérsias de Ventura, Bolsonaro e Trump parecem vir numa sucessão contínua. E as pessoas já acham “epah ele é mesmo assim”. As controvérsias são só um aspecto da personalidade da pessoa, ou são estratégia?
Se fosse só Trump, ou só Bolsonaro, podia ser do indivíduo. Mas hoje temos exemplos por todo o Mundo de uma estratégia partilhada, incluindo aqui ao lado em Espanha com o partido Vox. A estratégia é sempre a mesma — uma “caralhada” ou duas por semana, dominar o ciclo das noticias, aparecer em todas as manchetes, e aparecer em todos os jornais da noite na TV. Ganham assim a atenção dos media, e os media transmitem aquilo que estão a dizer para o público.
Para quê?
Em parte porque repetição = persuasão. O mero ato de repetir uma mensagem vezes e vezes sem conta tem efeitos de mudar a opinião das pessoas.
E também tem outras vantagens:
- Primeiro, as controvérsias são “seleccionadas” — no geral não são assim tão controversas (com o público em geral). O maior malabarismo da nova extrema-direita é mesmo propor muitas medidas que não são radicais para o público. A maior parte dos Portugueses acredita que há um problema com os ciganos e os subsídios. A maioria dos portugueses apoia também a prisão perpétua. Quando Ventura aparece na TV, depois de ser dito “radical”, e apoia coisas que parecem razoáveis, as pessoas ficam dispostas a ouvir mais. A população muitas vezes concorda com coisas que parecem “tabu” (e talvez certos assuntos não deviam ser assim tão tabu). Ponto-Chave: Outros partidos vão ter de se adaptar e adotar algumas destas medidas para cortar o apoio à extrema-direita.
- Já repararam que fora das controvérsias, pouco se fala sobre o programa do Chega? O Chega propõe a alteração de Portugal de uma república parlamentar para ter uma Presidencial. Defende a generalização dos despedimentos sem justa causa, quer retirar poder aos sindicatos, enfraquecer o SNS e as educação pública. Mas qual foi a última vez que ouvimos falar disso? A táctica das “controvérsias” cria “ruído” para esquecermos o “sinal” — o ruído sendo os “ciganos” etc. e o sinal sendo a tentativa do Chega de fazer um alteração política radical (alguns diriam de inspiração fascista). Ponto-chave: Qual foi a última vez que vimos uma discussão honesta do programa político do Chega?
- Isto tudo faz da campanha da Extrema-Direita para “Flood the zone with shit” — uma expressão de Steve Bannon sobre como desarmar os media. Citando Bannon, os media são “preguiçosos” e “só conseguem focar-se numa coisa de cada vez”. Se fizermos 3, 4, 5 coisas ao mesmo tempo, os media focam-se em 1 assunto, e os outros assuntos passam ao lado. Ponto-Chave: Bannon serviu na Marinha americana e sabe-se que passa o tempo a ler livros sobre história militar. Isto pode ser uma adaptação da ideia de um ataque ao OODA loop dos media.
“Uma maneira confiável de convencer as pessoas de mentiras é a repetição, porque a repetição não é fácil de distinguir da verdade” — Daniel Kahneman, neurocientista e autor de “Thinking Fast & Slow”
Continua na Parte 2…
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Lista de leitura:
Depois de ser demitido da Casa Branca, Steve Bannon fez esta entrevista de 2 horas onde disseca as operações da campanha e as suas convicções sobre politica no sec. XXI, de onde tiramos grande parte da informação para este artigo.
Repetition Is Persuasive. So Is Repetition.
Thinking Fast & Slow por Daniel Kahneman